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Exposição de Arte e Ciência

Data

29 Março - 27 Abril 2024

Local

Laboratório de Química Analítica | Museu

Exposição“O Tempo da Coisa” de Keninãna, fruto de nove meses de simbiose da dupla em Portugal, 2022. 

Keninãna nasceu dum encontro improvável entre Kenny e Nãna no Brasil em 2016 e cresceu no intuito de criar pontes simbólicas e afetivas através de nós, fios e galhos, para conectar mundos e realidades distintas mas ligadas/emaranhadas: Têxtil/Madeira, Brasil/Portugal, Ciência/Arte, Espírito/Matéria.

“O Tempo da Coisa” propõe uma experiência sutil, micro em torno de um possível “futuro ancestral”, utilizando ferramentas do passado mas a tentar abrir mão de inépcias evolutivas para que o melhor das diferenças possam dialogar respeitosamente em prol da criação de um futuro acolhedor para todos.”

Curadoria: Sofia Marçal

Inauguração: 28 março, 18h00
Lançamento do livro: 23 de abril, 18h00
 

CONVITE

 

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Da ancestralidade à contemporaneidade 

A exposição, O Tempo da Coisa de Keninãna resulta de uma colaboração entre Kenny Mendes e Janis Dellarte. Os artistas têm como metodologia a apropriação mecânica e orgânica dos materiais na construção dos seus trabalhos artísticos. Intencionalmente pretendem uma aproximação conceptual e metafórica na leitura das suas esculturas, no entanto, a exposição também pode ser lida de uma forma empírica e emocional. É composta por 18 instalações-esculturas de crochet e madeira, criadas pelos dois artistas, complementada por alguns pequenos objetos, “a mão que coleta a madeira e a transforma em objeto utilitário, contemplativo ou espiritual. A mão que colhe a fibra, que trabalha a lã e a transforma em fios, cordas, tecidos e bandeiras.” Nas palavras de Janis e Kenny.

A cor, a textura, a forma, a oralidade, a colheita, a ancestralidade, são elementos presentes nesta exposição, que se misturam com conceitos como, a desigualdade, a integração social, o preconceito, a tradição, o desperdício….“O aumento da desigualdade raras vezes é considerado sinal de alguma coisa além de um problema financeiro; nos casos relativamente raros, em que há um debate sobre os perigos que essa desigualdade representa para a sociedade como um todo, em geral ele dá-se em termos de ameaças à ‘lei e ordem’; quase nunca dos riscos para os ingredientes fundamentais do bem-estar geral da sociedade, como, por exemplo, a saúde física e mental da população, a qualidade de sua vida quotidiana, o sentido do seu engajamento político e a força dos vínculos que a integram à sociedade.”[1] Esta preocupação social é evidente nestes trabalhos de encontro e confronto, onde a partir de trapilhos de desperdícios das fábricas de malhas portuguesas e de madeira oriunda de Portugal e do Brasil, se problematiza à volta da acessibilidade e universalidade da arte.

No Laboratório de Química Analítica construiu-se uma ponte fictícia a partir de fios, de nós e galhos de árvores, que une duas realidades diferentes, por vezes antagónicas e como nos dizem os artistas, “mas ligadas/emaranhadas: têxtil/madeira, Brasil/Portugal, ciência/arte. No tempo atual, imediatista, onde os algoritmos, aplicativos e a inteligência artificial regem o comportamento da humanidade, a exposição O Tempo da Coisa propõe a experiência em torno de um ‘futuro ancestral’: uma homenagem à mão, mas também um restabelecer, um reintegrar da mão como ferramenta primordial.” Janis e Kenny deixam-se levar intuitivamente, há uma relação entre o processo e o seu resultado final, não é processo pelo processo, o material que utilizam é fundamental para alcançarem este propósito, mas sempre atentos ao seu lado intuitivo, suscitando assim, um momento de tensão entre a frieza da realidade e a anulação do referente implícito no aconchego das esculturas.

A exposição, O Tempo da Coisa recria uma visão do mundo no qual pertencemos a um tempo imaginário, a um tempo da coisa, em constante mutação na sua criação artística e social. “Todo o seu corpo e a sua alma perdiam os limites, misturavam-se, fundiam-se num só caos, suave e amorfo, lento e de movimentos vagos como matéria simplesmente viva. Era a renovação perfeita, a criação.”[2] A exposição questiona e agrega os conceitos ancestrais do fazer com os processos conceptuais na arte contemporânea. Citando os artistas, “nascem seres híbridos, bichos, trepadeiras, peças orgânicas, ferramentas, objetos encantados e objetos de fazer magia. Guiados pela coleta de histórias e materiais, saberes tradicionais, linhas, troncos, sonhos, viagens, pontos, entalhes, agulhas, facas, sensações, sentidos, inspirações, versos, simbologias e interpretações.” Onde a agulha de crochet, a faquinha e as mãos são os protagonistas desta exposição. A construção destas peças é um processo muito intuitivo e impulsivo, algumas têm um desenho prévio, pensadas sob um olhar despojado de preconceitos e de redundâncias, onde se valoriza o fazer manual. Continuando a citar os artistas, “mãos que geram nova vida, em cocriação com o mundo natural de que são parte. Mãos em corpos presentes, enraizados e integrantes dos ciclos e rituais da natureza. Mãos constituídas pela história, mas também pelas estórias, muito antigas, das quais -- para lá de dogmas -- a humanidade se tece.” É a exposição da inclusão de saberes, de culturas, de sensibilidades como contributo à natureza.

O Tempo da Coisa evoca a poética do cotidiano, da espiritualidade, do encontro, da partilha, em dissonância com a crise existencial que vivemos. “Isto é, entra dentro de ti, entra no teu coração. Muitas vezes vivemos só à superfície, vivemos no rame-rame da vida, vivemos à pele os acontecimentos. Mesmo a espiritualidade é alguma coisa sobretudo de fora, uma expressão de gestos, de atos, de coisas que fazemos. A verdade é que a nossa vida interior vai definhando, vai perdendo a capacidade de inspirar a vida, vai ficando para quando tivermos tempo que nunca temos. Vamos perdendo a coragem de entrar dentro de nós, vamos desacreditando de nós, de que é possível, de que vale a pena, de que Deus nos ama realmente e nos transforma, e acabamos por viver uma vida apenas superficial.”[3] Não importa tanto a realidade do mundo mas sim a nossa relação mais íntima com ele, a nossa predisposição para o acolhermos e o melhorarmos. No museu, na exposição e agora na contemporaneidade, encontramos a paz ancestral.

 

Sofia Marçal

 

[1] Zygmunt Bauman, in: Danos Colaterais, Desigualdades Sociais Numa Era Global, p. 8.

[2] Clarice Lispector in: Perto do coração selvagem, p. 50.

[3]Excerto da Homilia proferida pelo Cardeal José Tolentino de Mendonça, na Celebração de Quarta-feira de Cinzas, 2021.